menos é menos

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Tinha uma reunião de trabalho e a franja incomodava-me. Num ato de auto-suficiência resolvi dar um jeitinho. A tesoura estava pouco afiada e o resultado ficou irregular. Resolvi acertar. Piorou a situação. A franja restante já não era muita. Tentei só mais uma vez. Fiquei em modo prisioneiro de Auschwitz. Resolvi usar laca e gel (produtos que já não usava desde os 13 anos) e o que resultou desta utilização estaria na moda nos anos 90. Em 2011 eu era apenas uma parola saída de um campo de concentração. Lavei o cabelo e fui apanhar o metro. Esqueci-me do sucedido e interiorizei que o importante é sermos bonitos por dentro.
Antes de sair olhei-me de alto a baixo e perguntei à cara-metade se estava bem. Ele responde, sorrindo: “Sim, estás... com personalidade”. Devia ter desconfiado deste sorriso. Foi o primeiro de muitos durante o dia.
No metro comecei a notar que as pessoas me olhavam e sorriam. Um rapaz (giro) sentou-me à minha frente e sorria-me, enquanto me olhava fixamente nos olhos. Comecei a sentir-me a Miss Vilar do Pinheiro (e a preparar mentalmente o discurso de agradecimento quando ganhasse o título mundial de Miss Freguesia).
 O metro entrou num túnel escuro e vi-me refletida nas janelas e percebi. As pessoas não se riam para mim, mas de mim e o gajo que estava à minha frente (e que afinal não era assim tão giro) não me olhava nos olhos. Olhava fixamente a minha irregularequaseinexistente franja. Para remediar a situação pensei pegar no telemóvel, simular uma chamada e falar inglês (britânico) muito alto; a um inglês é desculpável qualquer coisa (como por exemplo, meias e sandálias no mesmo pé, ao mesmo tempo).
Fui à reunião e no fim lembrei-me desta passagem, de um livro que ando a ler de um autor que me faz rir (aqui):
"Naquele momento, o lado menos negativo da minha situação era o facto de não estar diante de chamas vermelhas, contendo no interior um taumaturgo reanimado de um sono de séculos por feiticeiros com intenções nada benéficas. Não sabia se fogo com propriedades sobrenaturais conseguiria queimar-me, mas não fazia questão de descobrir. Passando ao inevitável lado negativo, despertei no chão de uma divisão nada arejada, tendo à minha frente três dos referidos feiticeiros, olhando-me com desprezo. E um deles apontava-me uma arma. Porque até os lados negativos podiam ter lados negativos."

in "O fim chega numa manhã de nevoeiro", de Renato Carreira (mais autor aqui)




A importância do desastre da minha franja só podia ser anulado por três situações: se nesse mesmo dia me anunciassem que tinha uma doença terminal, se me inscrevesse num workshop de escrita criativa ou se me destacassem para trabalhar no Pólo Sul – lá teria de andar de gorro.