eu também quero uma mala (por 20 escudos)

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Dedicado a todos os vendedores de malas. Deste mundo e do outro.


O mundo está dividido em dois tipos de pessoas: as que se regem por impulsos e emoções e as outras. 

Eu faço parte das outras, o que não me torna menos aventureira e destemida. Nem muito menos uma gaja fria. Por exemplo, sou capaz de me atirar a uma caixa de bombons como se não houvesse amanhã e devorá-los, um a um, até ao último, encarando de-frente-e-olhos-nos-olhos a obesidade, as doenças cardiovasculares e os diabetes. É certo que desta perspetiva, um salto de parapente ou uma escalada pela montanha se transformam numa brincadeira de crianças. Nada comparável a uma doença crónica, que me possa acompanhar até à velhice. Mas a vida é assim e, às vezes, é preciso viver no limite.

Há 4 anos, 5 meses e 18 dias decidi comprar uma mala de viagem. E antes de o fazer pensei muito sobre o assunto. Pesei na minha Balança Digital Racional todos os prós e contras das minhas opções.

(eu quero uma mala perfeita que venha montada num cavalo branco)

Lista de prós e contras: 

 Clara (a que eu gostava) VS Escura (não se nota a sujidade)

 Pequena (mais confortável) VS Grande (para atafulhar de tralha)

 Dura (segura para transporte de objetos quebráveis) VS Mole (para atafulhar, outra vez)

 e finalmente

 Barata (sou pobre) VS Cara (mas quero parecer rica)

 Andava há já algum tempo apaixonada por uma mala. Tinha todas as características que eu não queria, tirando um pequeno pormenor: apesar de ser Clara, Grande, Mole e Cara escondia num compartimento meio secreto umas alças que a transformavam em mochila. Os compartimentos secretos são a minha perdição. Se me tentarem vender uma alface podre com um compartimento secreto, eu compro.

Com estas alças, nem a lama, nem os terrenos irregulares me impediriam de viajar confortavelmente por locais exóticos. Quando fosse impossível puxar, bastava colocá-la às costas.

Nessas viagens, essas alças seriam o verdadeiro copo-de-água-no-deserto. E andei colada naquelas alças muito tempo, procurando em outras malas esta caraterística, que nunca encontrei. O preço da mala era um grande entrave para mim e queria ser convencida a levá-la para casa. Mas a minha ideia de copo-de-água-no-deserto não era suficiente e precisava que alguém (para além de mim própria) me convencesse que aquela era a escolha indicada e não um sintoma de uma balança-racional-digital mal calibrada.

Depois de várias visitas à loja-da-mala e depois de já a conhecer por-dentro-e-por-fora (à mala) e estabelecer uma relação-de-quase-amizade com os vendedores da loja (se na altura tivesse Facebook de certeza que lhes pediria amizade), um dia, um deles convenceu-me imediatamente com o argumento de que “era uma marca tão boa, que até tinha garantia vitalícia”. Pronto, já não precisava de mais nada. Era mesmo isso que queria ouvir, porque acontecesse o que acontecesse teria esta mala até ao fim da vida. Valia a pena o investimento.







Mudei de casa, de cidade e de vida e guardei o talão da loja e os papéis da mala num cofre forrado de veludo vermelho e não pensei mais no assunto.

Continuei a sonhar com as viagens por locais exóticos, com lama e terrenos irregulares, e a puxar a mala em estradas alcatroadas e solos de mármore.

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Há coisa de 2 semanas, por atafulhar a mala-clara-grande-e-maleável com cortinas, que transportei de um terreno regular para outro, rebentei-lhe com o fecho. Aborreceu-me momentaneamente, mas não demasiado, já que a mala tinha garantia vitalícia.

Comprei um bilhete de avião, com a maior das alegrias, e com a desculpa de ir fazer outras coisas, aproveitei e meti uma mala dentro da mala-garantia-vitalícia, para entregar esta última para conserto. Cheguei à loja, onde já não se lembravam de mim, e expliquei a minha questão:

“Mala-garantia-vitalícia-fecho-estragado.”

Os senhores riram-se, atónitos, porque segundo eles “hoje em dia já nada tem garantia vitalícia” e concluíram sugerindo, a medo, que o conserto daquele Ferrari em forma de mala sairia quase ao preço da dita cuja.


Ao ouvir estas palavras, os meus olhos arregalaram-se muitomuitomuito, ocupando quase todo o espaço da minha cara. Em vez de uma cabeça, tinha dois olhos esbugalhados em cima do pescoço e uma forte urgência de violência física. Encolhi os ombros, até às orelhas, ao ponto das clavículas formarem dois poços profundos, que serviram de recipiente à baba de raiva que me foi pingando dos cantos da boca.

e fiz um grande esforço para ligar a Balança Digital Racional e não ter um faniquito à moda antiga

Fiquei a pensar, com desencanto, que a garantia vitalícia expira no momento da compra, quando depois de te atordoarem com promessas, te deixam de mala na mão e fecho éclair rebentado, e partem para o cliente que se segue com mais promessas de garantias vitalícias e merdas coisas do género que já não existem.



(esta história não tem Moral da História)