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“Os locutores da Rádio Pirenaica garantiam que o regime franquista estava nas últimas. Os folhetos que lia tão misteriosamente Ramón Tovar garantiam que o imperialismo e o fascismo eram tigres de papel. Nem ele arranjava trabalho, nem eu tinha perspectivas de vir a ser jornalista. No fundo, tínhamos a nossa terra, onde ao menos nunca nos faltaria um prato quente e um bom braseiro de azinho para nos proteger do frio, mas nenhum dos dois podia suportar a indignidade de ser o primeiro a confessá-lo. Eu escrevia quase diariamente àquela que é hoje minha mulher. Algumas dessas cartas ainda andam pelas gavetas da nossa casa e, quando me atrevo a lê-las, dá-me um acesso insuportável de vergonha, de piedade e de ridículo. Tendemos instintivamente a favorecer-nos nos retratos do passado traçados pela memória. Depois descobrimos numa carta de há vinte anos o que pensávamos e sentíamos de facto então e vemo-nos como éramos, não ingénuos, mas simplistas, fanáticos em vez de apaixonados e rebeldes, pretensiosos, ignorantes, bastante idiotas, mas sobretudo distantes, tão inacessíveis nessa distância como a fotografia de um desconhecido, usando palavras que hoje juraríamos nunca ter dito nem escrito.”

O Dono do Segredo, de Antonio Muñoz Molina