Labirinto burocrático

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Há dias acordei, abri uma gaveta e percebi que um documento que lá tinha guardado tinha caducado. Em 2009. Por azar, em 2012 ia precisar dele. Com urgência.

Desci 2765 escadas. Apanhei um metro, li 10 páginas do livro que ando a ler e fui ao sítio onde tratei deste documento há una 10 anos. Já não era ali. (my mistake, devia ter-me informado) Disseram-me que ligasse para um número de telefone, onde me indicariam: dia, hora e local para comparecer e tratar de tudo. Fácil, que bom!

Subi 2764 (saltei uma) escadas. Meti-me no metro, ouvi um álbum inteiro de uma banda que me tinham passado e liguei para o tal número. Para o tipo de “coisa” que ia fazer mandaram-me a um sítio (do outro lado da cidade), à secção de informações. Assim foi.

Um dia de tarde, tranquilamente, apanhei um autocarro e aproveitei os momentos, de limbo, no transporte: arrumei a minha caótica carteira, enquanto voltei a ouvir o mesmo álbum de há uns dias atrás (é daqueles que ainda não sei muito bem se gosto e preciso de ouvir, pelo menos, 5 vezes), fiz uma lista de supermercado e roí duas unhas. Uma delas até sangrar. Cheguei ao sítio, onde estavam mais 872630 estrangeiros e expliquei à entrada ao que vinha: informações, para renovação de “a coisa”. O senhor da entrada, que pela cara que trazia posta me parecia farto do seu trabalho, explicou-me que, ali, informações só durante as manhãs.

(1,2,3,4... respirar fundo e vá lá, não custa nada... isso: mostrar os dentes e colocar a boca em U. Isso mesmo, um sorriso e verbalizar em voz alta: - “Obrigadaaaaaaaa”)

 Apanhei um autocarro de regresso e, com o rabo entre as pernas, voltei a roer 3 unhas (as 3 até sangrarem), ouvi só uma música do mesmo álbum, que já me estava a irritar (afinal não gosto daquilo). Fiz uma lista mental de todas as pessoas que odeio no mundo. Fantasiei como espancar uma delas, enquanto ela, sem dentes me pedia clemência, e fui à manicure, para equilibrar os xacras shackras shakras.

Voltei ao local, dias depois. De manhã, como me disseram. Meti-me no autocarro e resignei-me a ir os 45 minutos a rezar, para resolver a merda da situação. Cheguei lá, estava 1 grau ao sol.

 “- Para informação? Naquela tenda”. (de circo, aberta, onde estão mais 200 estrangeiros como eu, em bancos corridos, à espera de serem chamados para entrar no edifício, onde serão atendidos, depois de esperar em mais uma bicha – sim bicha. BICHABICHABICHA). Mais de uma hora de espera, com uma tentativa de me passarem à frente na fila (bitch), mas a esperança de resolver os meus problemas. Fui atendida – 1 hora e 23 minutos depois de lá chegar - e explicaram-me que para a minha questão não era ali. Tinha que ligar para outro número (que entretanto tinha mudado, mas o anormal anterior que me informou mal nao devia saber) ou ir à sua página da net. Aqui dar-me-iam um dia, hora e local. Onde é que eu já ouvi isto?

- O QUÊ? – é o que eu imagino que o meu olhar disse, aos berros, enquanto as minhas mãos seguravam no colarinho da funcionária.

(1,2,3,4... respirar fundo e vá lá, não custa nada... isso: desta vez não é preciso sorrir, mas vá esforça-te diz lá... vá diz...)

- Obrigadaaa.

Apanhei o autocarro. Tentei conter as lágrimas, enquanto mentalmente voltei a espancar uma pessoa que odeio. Desta vez estava inanimada, no chão, enquanto eu a chutava, com botas de biqueira de aço... e picos de metal.. enferrujados... infectados com ébola e... 

Meti-me no site para marcar “a coisa”, mas de repente o PC deu-me uma série de letras para introduzir num espaço em branco. Dizia que isto servia para provar que “eu não era uma máquina”. Hesitei. Um PC queria que eu desse provas que não era uma máquina. Irónico. No mínimo. Com alguma dificuldade consegui mostrar que sou um ser humano, com sentimentos e tudo. Aliás, nesta fase já transbordava sentimentos. E lá consegui uma marcação para tratar de “a coisa”: 1 mês depois.

Não sorri. Não disse obrigada. Era só uma máquina como as que encontrei anteriormente, mas de plástico. A vida seguiu normalmente.

E lembrei-me de quando li “O Processo” e da minha inocência, ao pensar, que era uma história surreal. Espanquei o Kafka mentalmente. A minha mente, nesta fase, tinha-se transformado num bairro muito perigoso para se passear.

Aquando da escrita deste texto, já passou o tal mês. E mais meses depois desse. À “coisa” juntou-se “coisa 2”, “coisa 3” e “coisa 4”, porque uma “coisa”, nunca vem só. Todas as “coisas” envolveram uma série de peripécias com as quais tenho massacrado quem se senta comigo na mesa do café, ou se aproxima num raio de 20 metros. Ou ainda não me baniu virtualmente. Mas, porque o Santinho das Burocracias não dorme, tudo se resolveu pelo melhor, e à data de hoje sou uma pessoa livre de qualquer processo. E vivo feliz. Qual Teseu.